Flores amarguradas para um sonâmbulo amargurado.
O ônibus nunca esteve tão lotado como naquela manhã. Em pé, segurando no vão onde milhares de pessoas já pousaram suas mãos, meus braços sentiam o peso da viajem de 30 minutos. Eles estavam doloridos e calejados e ainda faltavam milhas para chegar ao cemitério. Fazia de tudo para não amassar as belas rosas que catei no quintal hoje de manhã. De rompante, senti as dores de uns dedos envelhecidos me cutucarem. Era uma senhora dos seus 60 anos de idade. Levantei pesarosamente a minha cabeça de modo que os nossos tristonhos olhos se encontrassem em meio àquela multidão pavorosa. Ela só queria me fazer um questionamento:
- Por que você está chorando?, ela indagou.
Estava tão entretido com a música que ouvia no toca-fitas, devia ser “Tomorrow never knows”, que nem me dei conta de que as minhas lágrimas escorriam pelo meu rosto. Espantei-me que elas tivessem chamado atenção daquela pobre e desatenta senhora. Ninguém presta e nunca prestou atenção em mim.
- Como hoje é segunda e parou de chover, pensei em levar um ramo de rosas ao meu túmulo, respondi, meio querendo não responder.. Só deu tempo de ver no rosto dela a sensação de espanto e desespero. Voltei, de súbito, ao meu estado de apatia solitária. Certamente, nessa altura, a música já era outra.
Chovia torrencialmente há uns três dias. Lembrei-me de Macondo, do Gabriel. Dias atrás, as ruas estavam alagadas e o trânsito congestionado, vi nos noticiários. O ônibus em que estava andava a passos de cágado, o que me dava ainda mais vontade de chorar, acho. Nunca me senti tão só dentro de um ônibus tão lotado.
Aquele cenário de chuvas melodramáticas me fez lembrar do dia em que morri. Faz algum tempo que vago solitariamente por entre as ruas dessa cidade de aparência igualmente mórbida. Não sei ao certo por que e de quê morri. Só sei que um dia acordei assim, leve, psicodelicamente flutuante. Às vezes tenho a sensação de estar voando, noutros momentos volto a caminhar taciturnamente. Noutras vezes, tenho uns formigamentos que me assombram a consciência, sobretudo na cabeça. Daí seguem-se alucinações, algumas doses de paranóia, e uns drinques de medo. Nunca nessa ordem, claro.
Do dia do meu enterro, lembro que o cemitério estava frio e gélido. Minha mãe e minha irmã ajudavam a compor a paisagem inóspita e solitária daquele lugar deserto, sem árvores, varrido apenas por restos de folhas envelhecidas que voltam depois que o vento da chuva passou. Os poucos que ali estavam para assistir aos meus últimos momentos terrenos choravam copiosamente. Não sei se suas demonstrações de afeto eram verossímeis ou se não passavam de fingimentos cristãos. Cristãos costumam ser exímios mentirosos. Queria mesmo era ser cremado, no entanto, a vontade de minha mãe prevaleceu.
Desci do ônibus. Já conseguia ver no horizonte os portões enferrujados e as catacumbas envelhecidas do meu cemitério. Acendi um cigarro. Vi de soslaio umas madames caminhando pelas calçadas; creio que sem rumo, tristes, sem assunto. Dali a pouco, uns pedintes tagarelavam sorridentemente, enquanto se entretiam com uma partida de baralho e tomando umas cervejas baratas. Olhei para as rosas... elas sorriam para mim... estavam intactas.
O sol já raiava e o pórtico do cemitério reluzia convidativamente. Entrei, caminhei um pouco e parei. Lá estava o meu túmulo, envelhecido e horrendamente destruído. Sobre ele, uns passarinhos solitários cantarolavam umas canções inaudíveis. Na epígrafe, lia-se “All you need is Love”.
Senti um olhar escorregadio e gorduroso sobre os meus ombros. Acendi um cigarro. Traguei a fumaça áspera e forte, antes de olhar para trás e confirmar a impressão que tive. A senhora tristonha do ônibus estava na catacumba ao lado, despejando sobre ele o seu olhar soturno e adornando-o com flores... acho que eram margaridas e lírios. Olhava-me como se quisesse me dizer alguma coisa, me alertar, me revelar a fórmula da felicidade ou o segredo do mundo...
Traguei novamente o cigarro e senti mais uma daquelas tonturas costumeiras. Coloquei as rosas sobre o túmulo, de maneira que elas ficassem bem no centro. Olhei para o lado esquerdo e vi que ela já tinha desaparecido. Caminhei até o túmulo e tive uma surpresa. A foto no túmulo era de minha mãe, morta no dia 25 de fevereiro de 1987, ano em que nasci. Uma súbita tontura fez-me prostrar diante daquela catacumba e uma escuridão total fez-se presente. Um silêncio, uma tranqüilidade, uma beatitude misteriosa e profunda, um estado perfeito que devia ser muito parecido à morte se fazia presente. Talvez agora, pensei, vou poder descansar em paz.
- Por que você está chorando?, ela indagou.
Estava tão entretido com a música que ouvia no toca-fitas, devia ser “Tomorrow never knows”, que nem me dei conta de que as minhas lágrimas escorriam pelo meu rosto. Espantei-me que elas tivessem chamado atenção daquela pobre e desatenta senhora. Ninguém presta e nunca prestou atenção em mim.
- Como hoje é segunda e parou de chover, pensei em levar um ramo de rosas ao meu túmulo, respondi, meio querendo não responder.. Só deu tempo de ver no rosto dela a sensação de espanto e desespero. Voltei, de súbito, ao meu estado de apatia solitária. Certamente, nessa altura, a música já era outra.
Chovia torrencialmente há uns três dias. Lembrei-me de Macondo, do Gabriel. Dias atrás, as ruas estavam alagadas e o trânsito congestionado, vi nos noticiários. O ônibus em que estava andava a passos de cágado, o que me dava ainda mais vontade de chorar, acho. Nunca me senti tão só dentro de um ônibus tão lotado.
Aquele cenário de chuvas melodramáticas me fez lembrar do dia em que morri. Faz algum tempo que vago solitariamente por entre as ruas dessa cidade de aparência igualmente mórbida. Não sei ao certo por que e de quê morri. Só sei que um dia acordei assim, leve, psicodelicamente flutuante. Às vezes tenho a sensação de estar voando, noutros momentos volto a caminhar taciturnamente. Noutras vezes, tenho uns formigamentos que me assombram a consciência, sobretudo na cabeça. Daí seguem-se alucinações, algumas doses de paranóia, e uns drinques de medo. Nunca nessa ordem, claro.
Do dia do meu enterro, lembro que o cemitério estava frio e gélido. Minha mãe e minha irmã ajudavam a compor a paisagem inóspita e solitária daquele lugar deserto, sem árvores, varrido apenas por restos de folhas envelhecidas que voltam depois que o vento da chuva passou. Os poucos que ali estavam para assistir aos meus últimos momentos terrenos choravam copiosamente. Não sei se suas demonstrações de afeto eram verossímeis ou se não passavam de fingimentos cristãos. Cristãos costumam ser exímios mentirosos. Queria mesmo era ser cremado, no entanto, a vontade de minha mãe prevaleceu.
Desci do ônibus. Já conseguia ver no horizonte os portões enferrujados e as catacumbas envelhecidas do meu cemitério. Acendi um cigarro. Vi de soslaio umas madames caminhando pelas calçadas; creio que sem rumo, tristes, sem assunto. Dali a pouco, uns pedintes tagarelavam sorridentemente, enquanto se entretiam com uma partida de baralho e tomando umas cervejas baratas. Olhei para as rosas... elas sorriam para mim... estavam intactas.
O sol já raiava e o pórtico do cemitério reluzia convidativamente. Entrei, caminhei um pouco e parei. Lá estava o meu túmulo, envelhecido e horrendamente destruído. Sobre ele, uns passarinhos solitários cantarolavam umas canções inaudíveis. Na epígrafe, lia-se “All you need is Love”.
Senti um olhar escorregadio e gorduroso sobre os meus ombros. Acendi um cigarro. Traguei a fumaça áspera e forte, antes de olhar para trás e confirmar a impressão que tive. A senhora tristonha do ônibus estava na catacumba ao lado, despejando sobre ele o seu olhar soturno e adornando-o com flores... acho que eram margaridas e lírios. Olhava-me como se quisesse me dizer alguma coisa, me alertar, me revelar a fórmula da felicidade ou o segredo do mundo...
Traguei novamente o cigarro e senti mais uma daquelas tonturas costumeiras. Coloquei as rosas sobre o túmulo, de maneira que elas ficassem bem no centro. Olhei para o lado esquerdo e vi que ela já tinha desaparecido. Caminhei até o túmulo e tive uma surpresa. A foto no túmulo era de minha mãe, morta no dia 25 de fevereiro de 1987, ano em que nasci. Uma súbita tontura fez-me prostrar diante daquela catacumba e uma escuridão total fez-se presente. Um silêncio, uma tranqüilidade, uma beatitude misteriosa e profunda, um estado perfeito que devia ser muito parecido à morte se fazia presente. Talvez agora, pensei, vou poder descansar em paz.